domingo, 18 de agosto de 2013

memória de peixe

“por favor, esquente o peixe que vou comer sozinho e entrar no mar daquele saudoso abril. entre as espinhas, a areia quente; pelo sal, a flor; na pele, a pele. comer sozinho é sempre uma forma de lembrar”

o senhor está sentado na mesa de madeira. “o velho é assim, come sozinho”. sempre comeu, desde novo. apesar de nunca ter sido de verdade novo. as empregadas dizem em voz baixa que ele já saiu da mãe com a barba hirsuta e branca. e chorou, molhando os pesados fios. cresceu um garoto enrugado, sentado na mesa de madeira. cada refeição procurando o espaço entre os fios de bigode e os dentes tortos. comer sozinho é sua atividade preferida. grandes pratos em demoradas garfadas. como uma baleia abrindo a boca e deixando a água entrar vagarosa pra comer um peixe pequeno. 

o senhor está sentado na mesa de madeira, mas hoje não vai comer sozinho. essa moça veio, puxou uma cadeira e sentou-se. um peixe pra dois, hoje.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

até que nos sentimos vermelhos


teu olho no meu em desespero cruzado. tu te aperta o peito e grita que não quer ter olhos. te abraço forte por tempo interminável e dançamos em descompasso. o violino pisa nos teus pés, o grave te empurra, o agudo desloca e a voz desalinha roupas. te cubro de ternura por não ter verdade pra te dar. escrevo o que tenho no teu corpo. o começo em tuas pernas, o frio na barriga, o medo, a certeza, o amor e a entrega. damos os nomes dos frutos e vivemos a vida escrita em sua pele - é o que tenho. acreditamos na tinta até que nos sentimos vermelhos, desfocados e abrimos os olhos e tudo preto.